Friday, April 23, 2004

“Voluntariado e Participação”
Texto da intervenção na Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, Portugal
Sobre “Voluntariado”
Viana do Castelo, 29 de Março 2004



A noção de voluntariado consubstancia uma atitude de ímpeto porventura demasiado pessoal que na minha opinião poderá ser mais interessante apreciar no contexto mais colectivo, digamos assim, da PARTICIPAÇÃO.

Temas
1 - Democracia e participação
2 - Convergência Estado/Cidadãos
3 - Participação ou participações ?
4 - Participação e Cidadania
O presente texto omite voluntariamente as referências bibliográficas.


1 - Democracia e participação

Para compreendermos a relevância do tema da participação, hoje nas sociedades mais avançadas, devemos distinguir duas concepções mais importantes de democracia, inerentes aos regimes democráticos constitucionais: a democracia constitucional e a democracia participativa. Veremos como estas são divergentes.

A democracia constitucional caracteriza-se por uma competição entre diferentes líderes políticos movidos pela possibilidade de derrubar maus governantes. Há portanto uma competição pelo poder com mudanças sucessivas de governo com adesão às regras constitucionais, sendo que o elemento central de perenidade destes regimes são a representatividade, a separação dos poderes e a responsabilidade dos governantes. Porventura, será este o sistema político em Portugal.

Note-se que, nesta acepção, a participação dos cidadãos não é vista como fulcral ao regime democrático constitucional mas sim necessária para o normal funcionamento constitucional.

A democracia participativa (Ideia segundo a qual os cidadãos manifestam hoje o desejo de ser mais associados à tomada de decisão) tem origem no grego “governo por muitos” e não na acepção de “governantes únicos” (anterior).
Nesta concepção, a democracia só pode ser realizada através da participação activa e contínua de grandes sectores da população no processo político. Os “muitos” são todos os cidadãos. Esta concepção apresenta duas versões:
a) a democracia republicana realça a cidadania responsável e a participação responsável dos cidadãos como tradição civil da comunidade
b) a democracia comunitária considera que a democracia republicana é um direito básico de todos os cidadãos. Os democratas comunitários, nos quais me incluo, defendem que os cidadãos devem controlar as condições que governam as suas vidas, na deliberação e na implementação das políticas. Considera-se que esta participação é mais importante que o regular funcionamento das instituições.

Para os republicanos, a sociedade civil é autónoma em relação ao Estado. Para os comunitários deve haver uma combinação da sociedade civil com o Estado, com predominância deste último

Mas republicanos e comunitários consideram que a participação dos cidadãos condiciona, naturalmente, o desenvolvimento do regime democrático.
Haverá reforço e continuidade quanto maior esta participação. O inverso fragiliza a democracia, abrindo portas aos (novos) fascismos .

Ora, sobre este assunto da participação há duas literaturas teóricas. A primeira defende um limite permeável para a participação dos cidadãos, clientes, políticos e representantes de agências governamentais, bem como organismos privados sem fins lucrativos.

A outra literatura da análise da participação política, propõe dar ao cidadão uma voz distinta para estabelecimento de programas públicos durante a formulação das políticas. Haverá porventura uma terceira via possível que passaria pela melhoria de um sistema de valores dentro das organizações públicas, assentes na democracia da administração.

Podemos, rapidamente, citar algumas experiências de sucesso

Durante os anos 80, numerosos County Councils da Inglaterra apostaram na melhoria dos serviços prestados a par da melhoria da descentralização, através da democratização do processo da tomada de decisão, da criação de representações a nível dos Bairros urbanos, o “open government”, direito dos cidadãos às reuniões, melhor apoio aos vereadores, a extensão da democracia representativa, com a implementação das comissões locais dos vereadores, incremento de maior participação dos excluídos e das associações e movimentos populares.
Na Espanha e nos Estados Unidos, as Comissões de vizinhos participam activamente em projectos de gestão dos assuntos públicos municipais, com o sucesso que se conhece.

Na França, a instalação de Conseils de Quartiers, espécie de comissões de auscultação dos cidadãos nas cidades francesas de mais de 80 000 habitantes, foram impostas por lei em 2002 e têm obriga a uma aproximação dos políticos aos cidadãos.

A “Semana da Democracia Local” que as colectividades locais inglesas levaram a termo em finais de Outubro de 2003 (www.localdemocracyweek.info) procura informar os cidadãos sobre a organização da administração local no Reino Unido, as formas de participação e de interferência nos assuntos públicos. Uma iniciativa que pretende também “listening to tomorrow´s voters today”.


A Comissão Europeia também está preocupada em alargar a participação dos cidadãos desde a concepção à implementação das políticas. Segundo esta instituição, este procedimento faz aumentar a confiança no resultado e também nas instituições que produzem as políticas e todos sabemos quanto é relevante, ainda, o divórcio entre cidadãos e União europeia.

2 - Podemos questionar se se verifica
uma convergência Estado/Cidadãos

É defendido que o Estado ignora em boa medida um dos seus elementos estruturais, “a interiorização dos direitos como direitos e não como produto de um Estado benemérito”.
Neste sentido, o Estado não procura aproximar-se do cidadão, historicamente, senão exigir-lhe o cumprimento de regras processuais que o próprio Estado produz.
Será o sector privado (sociedade civil, empresas) a contagiar e a abalar este estado de coisas, nomeadamente com os trabalhos sobre o alastramento da tendência para a participação das bases para o topo.

Considera-se que as pessoas afectadas por uma decisão têm de fazer parte do processo que conduz à tomada dessa decisão. Seria a morte anunciada da democracia representativa e a emergência da participação cidadã directa.

Sabemos que esta meta está longe de ser atingida
.
3 - Participação ou participações ?

Nos anos sessenta, a palavra participação é sobretudo aproveitada para referir ao direito de controlo, à livre discussão e intervenção dos membros de uma comunidade e o seu contrário, a abstenção.

O conceito de participação está intimamente relacionado com os direitos da cidadania nomeadamente nos regimes democráticos modernos mas, infelizmente, este conceito ainda não estará ainda, contemplado nos direitos básicos da cidadania.

Conceitos de participação e de democracia estão intimamente aliados sendo que os de cidadania e de direitos de intervenção numa comunidade, dão origem a diferentes formas de exercício democrático dos indivíduos.

A clássica “Escola de participação do cidadão” de Arnstein (1969) faz a distinção entre a participação que oferece uma influência real (na decisão) e processos que são apenas rituais (de participação). Muitas das instâncias criadas em Portugal recentemente e que associam os cidadãos ou as suas organizações às decisões são apenas rituais de participação.

Pois a participação poderá depender do nível de recursos educacionais ou do isolamento ou exclusão. A participação em mecanismos institucionais pode resultar em autêntica falência, decorrente de défices de comunicação ou de desconfiança entre agentes envolvidos (cidadãos, técnicos, decisores) se considerarmos que participação está ligada a fenómenos locais por inerência.

As novas formas de governança assentam em vertentes da participação que se revestem, ora de um carácter influenciador, ora legitimador, ora inspirador. Por isso, falei, mais atrás, nas participações.
A participação de influência acontece quando o cidadão se envolve nas instituições públicas e nos processos de decisão a fim de os influenciar. A participação de legitimação refere aos processos de consulta e organizações que, normalmente surgem sob o patrocínio das autoridades e dos poderes públicos, com o objectivo de obter a anuência e o empenho das populações nas decisões que lhes dizem respeito. A participação inspiradora envolve os cidadãos na concepção, planeamento, implementação e controlo das decisões.

4 - Participação e Cidadania

Com a autonomização do homem em relação ao religioso, sobretudo na cultura política europeia, com os movimentos da reforma e da contra-reforma, destaca-se uma visão ctónica, global do mundo: diz-se que o homem é naturalizado assim como a sociedade e a natureza. A soberania é transferida para o homem, para o povo. A Lei obrigando estes e as suas instituições.

Prevalecem os conceitos de representação, cidadania e responsabilidade dos governantes. É a transformação de uma cidadania outrora aclamadora ou homologadora para uma outra, de cariz participativo, com os mecanismos de controlo e de sanção como os garantes da exigência da responsabilidade dos governantes.

Distingue-se quatro modos de participação na actividade política:
1 – O voto que é o mais generalizado acto de cidadania e de impacto na performance do governo;
2 – A actividade de campanha que é outro acto;
3 – Os contactos dos cidadãos com os funcionários do governo, um contacto a nível individual ou colectivo por vezes;
4– Organizações ou grupos que actuam para lidar com os problemas sociais ou políticos (qualificada de “communal activity”).

Naturalmente que as características pessoais dos cidadãos interessam nesta fase de medição da sua participação, tais como o seu estatuto social, a raça, a sua posição no ciclo de vida e certas atitudes suas, se o indivíduo actua no contexto organizacional; por fim, a natureza da comunidade, os partidos políticos, a dimensão da cidade.
Diversos estudos confirmam a sobre-representação das classes mais abastadas na participação política (maior intrusão nas associações de voluntariado, nos partidos políticos, nas actividades comunitárias e nas campanhas eleitorais) e a diminuição da participação consoante o aumento da cidade – isto é, a actividade comunitária é mais elevada e intensa nas pequenas aldeias e vilas. Nas grandes cidades a participação dilui-se nas inúmeras ofertas da urbe. Mas nota-se igualmente o crescimento da população participante, resultante do aumento da educação, do nível de vida, de melhores empregos.

De forma notável, Boaventura Sousa Santos denuncia com virulência os novos fascimos dos Estados e dos capitalismos. Defende que a democracia redistributiva (apanágio da democracia representativa) tem de ser democracia participativa e a participação democrática tem de incidir tanto na actuação estatal de coordenação como na actuação dos agentes privados, empresas, organizações não governamentais, movimentos sociais, cujos interesses e desempenho o Estado coordena.

Este investigador considera que para se ultrapassar a crise societal actual, o único desígnio é um Estado experimental, que seja democrático, redistributivo, que garanta a igualdade de oportunidades mas que deve também garantir padrões mínimos de inclusão, que tornem possível a cidadania activa necessária a monitorar, acompanhar e avaliar o desempenho de projectos alternativos. O novo Estado de bem-estar é um Estado experimental e é a experimentação contínua com participação activa dos cidadãos que garante a sustentabilidade do bem-estar.

Para terminar, convirá relembrar a tripla dimensão do conceito de cidadania de Marshall (1975) a civil, a política e a social.
Os direitos civis, na definição clássica, incluem: o direito à liberdade individual, de pensamento e de expressão, à prática da religião e de reunião e associação, direitos de propriedade e de contrato. São estes os direitos permissivos da acção humana. Nestes, o cidadão é “agente” e defende-os, por vezes, contra o próprio Estado. São uma forma de poder do cidadão que tem direitos e liberdades que o Estado não pode invadir.

Os direitos políticos, dizem respeito à participação dos cidadãos no exercício do poder político, seja através do voto, do direito à greve e da possibilidade de negociação laboral, ou ainda pela capacidade de intervenção nos destinos da nação”.

Os direitos sociais não se destinam ao exercício do poder, mas sim a usufruto de benefícios garantidos pela administração pública. Neles, o cidadão assume o papel de “consumidor” dos serviços sociais e educativos – em suma, do património da sociedade – que o Estado é obrigado a proporcionar. É a figura do Estado-providência.
E nas últimas décadas houve o surgimento de novos direitos dos cidadãos, nomeadamente os referentes à participação nos procedimentos da administração. Será o conceito de cidadania activa, quer para pessoas singulares, quer para as colectivas: organizações sociais, sindicais, económicas ou políticas.

Obrigado pela vossa paciência.

ESTG, Viana do Castelo, 29 Março 2004 Arnaldo Ribeiro,